sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Das coisas que começam num repente e se estendem

Hoje acordei com o sol brilhando, às 6h30 da manhã. Desde cedo o dia estava quente, e houve até uma proposta de vento fresco na minha cortina. O tempo parecia se deixar levar calma e lentamente, e o trânsito que começava parecia seguir o mesmo ritmo da manhã: aquela calmaria, apesar do tempo quente. A sexta-feira se estendia ao sol, se deixava aquecer, descansava.
Contrastando com tudo isso, minha metereologia interna. Eu me aborrecia desde já com tudo aquilo, apesar de saber estar o dia belo. Deixei de lado, com um certo enfado, o terno e a gravata. Foi com enfado também que tomei o café da manhã. Tudo que eu queria estava ali, e eu não queria mais nada. A facilidade com que me preparei para sair não me estancava o humor, que já estava se tornando péssimo. Assim, sem motivo, eu estava estranho a mim, e deixava este outro eu começar um lindo dia pessimamente. Assim, sem motivo, eu me aborrecia com tudo, e me aborrecia com esse outro que era eu. E assim, sem saber, eu não o controlava.
E como que por castigo, o trânsito me deixou exposto a sol, ao tempo e às pessoas que atravessam a avenida, apressadas. Algumas sorriam, outras simplesmente andavam. E eu ali, amargo. Cada minuto que eu me mantinha naquele tráfego travado me irritava mais, pois tinha que suportar aquele outro que nada suportava, pois tinha que me suportar.
Decidido a não deixar que nada mais fugisse da minha vontade, que nada mais acontecesse sem que eu quisesse (decidido a me deixar levar por eu-outro), entrei apressado na repartição. E foi ali que, indo contra todas as minhas resoluções mal-humoradas da manhã, indo de afronta à minha vontade, à mim mesmo e ao outro, eu a vi. Ali, parada, de vermelho. Mas porque diabos ela foi vir de vermelho? Só o fato de ela estar ali, parada de vermelho, vivendo outra coisa que não a minha exasperação, sentindo outra coisa que não o amargo de mim, fazia crescer a minha indignação.
Ela não me via. Ou melhor, me via, mas para ela isso não fazia diferença nenhuma. Como não deveria fazer para mim também. Mas, porque fazia? Porque o fato dela ser algo totalmente externo a trazia com mais força para dentro da minha cabeça? Eu a via ali todos os dias, já tínhamos nos encontrado nos corredores e em reuniões, mas pra mim isso não fazia tanta diferença. Só começou a fazer um dia que eu a descobri totalmente alheia a mim. Quando eu descobri que para ela eu era só mais um colega de trabalho, mais um chefe de alguém que aparecia e que mais tarde iria embora, sem deixar vestígio nem lembrança. E como essa indiferença (pois para ela eu e todos os outros éramos uma coisa só: o outro que não ela. Ela não pensava em mim.) era natural nela! Como para ela era simples não me ver!
E tudo isso não me inquietava. Mas agora, hoje, e não sei porquê, aquela mulher de vermelho me inquietava totalmente, aquele universo que não o meu me intrigava, e me irritava de alguma forma. Foi aí que me subiu uma ânsia de ser visto, ser notado por ela. Não como "outro", mas eu. Mas para ela não faria tanta diferença. Ela não notaria que hoje eu não estava de terno e gravata, ela não notaria que não fiz a barba. Não notaria que a minha estranha irritação contrastava em tudo com aquela blusa vermelha, com aquele ar que ela tinha. E de repente eu percebi que eu não poderia contar-lhe como foi a minha manhã, não poderia ligar-lhe para nos encontrarmos antes do jantar. E comecei a sentir uma falta imensa daquela presença que eu nunca tive. E tudo isso ao mesmo tempo me irritava e me entristecia. E naquela hora eu soube que ela estaria em mim ainda por um longo tempo...
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"Eu não sou eu, nem sou o outro.
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte do tédio-
que vai de mim para o outro
Mário de Sá-Carneiro"

2 comentários:

Marcos disse...

Parabéns Raíssa,

Seja bem-vinda ao CPROFEVSCECF (Clube dos Paranóicos Recortadores de Olhos em Fotos que Escutam Vozes em Suas Cabeças e Escrevem Contos Fantásticos).

Brincadeirinha! O texto ficou muito legal. Parabéns sincero.

Até mais.

Eduardo disse...

Se o ambiente não fala dê voz a ele...
Se somos só solidão, que também se dê voz.
Muito bom!!!